segunda-feira, 13 de julho de 2009

O HOMEM E O RIO

GRUPO TRAMPOLIM E O RIO CAPIBERIBE
Nos poemas O Rio e Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, a linguagem, catalisadora de metamorfoses, transmuta Rio em Homem e Homem em Rio, tornando esses elementos temáticos, em seu relacionamento recíproco, imagens poéticas confluentes.
Têm-se, no caso, duas histórias (a de Severino, retirante do sertão nordestino e a do Capibaribe, rio cujo leito leva ao Recife), que, cruzadas, originam um sistema de equivalências, em que o rio humanizado e o homem fluvializado confundem suas naturezas, em face de um estado de precariedade por ambos compartilhado.
As passagens, a seguir, extraídas, respectivamente, dos poemas acima mencionados, põem em evidência, por perspectivas diferentes (primeiramente, a do Capibaribe, depois, a de Severino), o processo de amalgamação que liga de forma indivisa Rio e Homem:

"Os rios que eu encontro
Vão seguindo comigo.
Rios são de água pouca,
em que a água sempre está por um fio.
Cortados no verão
Que faz secar todos os rios.
Rios todos com nome
e que abraço como a amigos.
Uns com nome de gente,
outros com nome de bicho,
uns com nome de santo,
muitos só com apelido.
Mas todos como a gente
Que por aqui tenho visto:
a gente cuja vida
se interrompe quando os rios.
Vejo que o Capibaribe,
como os rios lá de cima,
é tão pobre que nem sempre
pode cumprir sua sina
e no verão também corta,
com pernas que não caminham.
Tenho de saber agora
qual a verdadeira via
entre essas que escancaradas
frente a mim se multiplicam".
Assim como o rio Capibaribe, Severino se define por sua natureza desvalida – ambos estão sujeitos a um destino de penúria, motivado pela seca. É a marca da carência que os aproxima e une numa poética de travessia. Sempre mirando-se, um sendo o eco do outro, rio e homem mal podem ser distinguidos.
Sente-se que o rio se identifica com o viver nordestino, ou mesmo que o rio e a vida são a mesma coisa. Tem-se, no caso, a configuração do elemento fluvial como extensão do humano (e vice-versa).
A relação isomórfica entre rio e homem torna-se, na poética de JCMN, metáfora de realidades amplas e, ao mesmo tempo, projeção simbólica de procedimentos de uma cultura regional que se movimenta à beira do precário e da sobrevivência.

A idéia mais frisada nos poemas parece ser a de que a vida, identificada com a natureza do rio, é translato, viagem, que coincide com a procura de melhores paragens.
Tal busca implica difíceis andanças, luta constante e o defrontar com duras realidades, o que põe à prova a capacidade de resistência às asperezas. Atuando nessa direção, a prática textual apresenta, em cenário nordestino, seres viventes que, desprovidos de quase tudo, extraem de sua condição de carência a coragem necessária para prosseguir.

Compondo uma escritura fortemente voltada para a captação da realidade social e humana, os poemas em questão recriam paisagens dessublimadas, dão a ver um espaço depurado de imagens idealizadas, resultando o texto poético numa mescla de esferas que abarca o regional e o universal.
Devido a isso, nas dúvidas, inquietações, esperanças e desesperanças dos severinos-rios, ressoam indagações próprias do ser humano, em qualquer parte e em todos os tempos.

A verdade é que se está diante de um tipo de produção literária que busca falar do Nordeste, apontar experiências de vida, sem cair, contudo, em categorias reducionistas de representação.
A escritura, ao instaurar, entre outros recursos, a conexão isomórfica entre rio e homem, distancia-se, de pronto, do discurso etnográfico clássico, torna patente a noção de que não está objetivamente transmitindo um quadro antropológico, mas sim de que está ficcionalizando uma realidade sócio-cultural, isto é, interpretando-a pela via do simbólico.

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